Eles participaram de reunião da Organização Mundial da Propriedade Intelectual que debateu uso de obras protegidas para treinar ChatGPT e outros modelos de linguagem
Os impactos da inteligência artificial generativa comercial nos direitos autorais, tema de crescente preocupação global para a indústria da música e outros segmentos da economia criativa, estão no centro de uma série de debates, esta semana, no Comitê de Direitos Autorais e Conexos da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), em Genebra (Suíça). Com a participação de três grandes vozes do país, as cantoras e compositoras Marisa Monte e Giulia, ambas associadas da UBC, e do cantor e compositor Frejat, além do advogado especialista em direito autoral Sydney Sanches, a sessão desta quinta-feira (18) teve uma apaixonada defesa do componente humano, insubstituível, na criação artística.
Giulia, que viajou até Genebra para falar presencialmente no evento, fez uma apresentação em que elencou alguns usos positivos da IA generativa para potencializar a criatividade, deixando claro, no entanto, que a tecnologia só tem lugar quando combinada com o esforço humano.
“Essas tecnologias, se usadas com sabedoria, podem e devem ser nossas aliadas na criação artística. Gosto da ideia de me antecipar a algo que virá pra cima de todos nós algum dia e dizer ‘ah, não, eu estou aqui primeiro’, disse Giulia. "A IA não é minha substituta. É minha assistente."
Em seguida, foi a vez de Marisa falar. Por meio de um vídeo que gravou do Brasil, ela levantou necessárias questões sobre a cara menos positiva da IA generativa, como o uso sem regulação de conteúdos protegidos por direitos autorais para o treinamento de ferramentas como ChatGPT e muitas outras — tudo sem pagamento ou autorização dos titulares das obras usadas:
“A chegada das novas tecnologias trouxe uma mudança radical sem regulamentação. Nos últimos 25 anos, a gente tem trabalhado bastante para conseguir restabelecer os direitos que havia antes. (No que toca à IA), hoje, sem que eu ou nenhum de nós na criação tenha dado autorização, todas as nossas obras já estão disponíveis através de ferramentas de IA para os mais diversos usos. Não há legislação, não há um combinado prévio (para os usos das obras)”, denunciou a artista, que falou na condição de cantora, compositora, intérprete, produtora e música acompanhante com 35 anos de atividade musical. “Nós, proprietários dos direitos autorais, estamos vivendo uma situação de desapropriação compulsória.”
VEJA MAIS: O discurso de Marisa na íntegra
Do painel, mediado por Paolo Leiteri, Conselheiro Jurídico da Divisão de Direitos Autorais da OMPI, participaram ainda diversas outras partes interessadas internacionais, incluindo artistas, acadêmicos, juristas e especialistas em música e tecnologia de países como França, Espanha, Japão, África do Sul e Uruguai.
Em sua intervenção, o cantor e compositor Frejat lembrou outro aspecto potencialmente perigoso da nova tecnologia: a geração de deepfakes e outras formas de imitação de vozes e estilo de artistas consagrados.
"Temos que parar as máquinas e começar a discutir este tema porque, a partir do momento em que isso se tornar uma tecnologia consolidada com o uso no mainstream, vai ficar muito difícil para nós, os artistas que somos prejudicados, negociar com os usuários e negociar com aqueles que estão se beneficiando do uso dessa tecnologia", afirmou, lembrando que a nova tecnologia pode aumentar a concentração de poder e a transferência de renda dos criadores para as grandes corporações que a desenvolvem.
Sydney Sanches, presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e da Comissão de Direitos Autorais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Nacional, descreveu o encontro como um grande passo.
“Faltava o ingresso efetivo da OMPI no debate público internacional acerca da regulação da inteligência artificial. As sessões de hoje, dedicadas exclusivamente à IA, com a participação de autores, titulares de direitos, entidades e empresas de tecnologia, trouxeram toda a complexidade do tema e procuraram indicar alternativas para a proteção dos direitos autorais. A pauta da IA se consolida e entra com força na agenda oficial da OMPI, abrindo caminho para debates multilaterais que podem alcançar um marco regulatório internacional", ele afirmou, lembrando que um eventual novo tratado internacional que englobe regras sobre direitos autorais para treinar sistemas de IA generativa certamente não sairá do papel da noite para o dia. "Mas há a vontade política em todos os lugares. Se todo mundo caminha para o mesmo lado, tudo anda mais rápido. Já há o exemplo europeu, da Lei Europeia de IA, e nós também estamos fazendo algo parecido no Brasil."
De acordo com ele, o Brasil foi um protagonista nas jornadas de debates na OMPI em Genebra, "com as vibrantes e firmes participações de Marisa Monte, Roberto Frejat e Giulia, que defenderam a importância estratégica e essencial dos direitos autorais para os desenvolvedores de IA. Foi o primeiro, mas um largo passo.”
De fato, como Sanches diz, a necessidade de regular o uso e impor regras que deem mais controle aos donos das obras mineradas no treinamento dos sistemas de IA generativa esteve presente na maior parte dos discursos. E poucos sintetizaram a questão tão bem como Marisa Monte:
“O prejuízo lesa os profissionais das mais diversas expressões intelectuais e criativas. E quem se privilegia disso são as grandes corporações, as mesmas de sempre, as maiores do mundo, que concentram riqueza e renda prejudicando indivíduos como eu. Por isso, é importante que a OMPI e seus estados membros não poupem esforços na oportunidade de estarem juntos, discutir um tratado global que possa proteger o espírito criativo humano em nome do patrimônio intelectual e cultural da humanidade.”
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