Em entrevista, a sócia Carol de Amar fala do festival Sarará, que elas criaram, e da rede de parceiras que construíram no mercado
O ano era 2011. Duas mulheres - talvez, então, as únicas produtoras de shows de funk em Belo Horizonte - descobriram que tinham datas paralelas com Mr. Catra agendadas num intervalo de poucos dias. Naqueles tempos, o funkeiro andava famoso por não aparecer nas próprias apresentações. Para evitar um bolo e o consequente prejuízo, elas decidiram se juntar e produzir um só show. Nunca tinham se visto antes disso.
O sucesso daquele primeiro encontro deu em outro. E outro. E outros muitos. E numa produtora nascida no primeiro trimestre de 2014 para realizar, já naquele mesmo ano, um festival em tudo experimental: o Sarará BH, uma mistura de música urbana, mensagens sociais e blocos de carnaval para ocupar parques públicos da capital mineira.
Agora, a tal produtora, A Macaco, celebra 10 anos (assim como o festival). E as duas mulheres lá do início, Carol de Amar e Bell Magalhães, seguem firmes à frente dela. Como uma árvore sadia, o projeto cresceu e ramificou-se: além do Sarará (já sem o BH), festival que reuniu 35 mil pessoas na edição de 2023, elas dirigem o selo A Macaco, a fomentadora de ideias e cenas musicais MacacoLab, o espaço multiartístico Mamão Com Açúcar e as carreiras de artistas como a banda Lagum e a cantora, compositora e instrumentista Nath Rodrigues, participante do songcamp 100% feminino Por Elas Que Fazem a Música, da UBC.
Há um tempo, Carol e Bell abriram espaço para os homens. Mas quem levantou todo o "edifício", mesmo, foram as minas.
“Hoje, somos 15 mulheres e quatro homens. Muitas vezes pode ser complexo trabalhar com homens que não possuem o tato e a sensibilidade compatíveis com o que o ambiente, as pessoas, as situações que enfrentamos e os projetos que desenvolvemos precisam. Então, o cara para estar aqui tem que ser muuuito especial", diz Carol, aos risos. “Sem brincadeira, o que a gente está tentando aqui é fazer algo efetivo para colocar mais mulheres no mercado e crescer com elas. É ter um olhar de empatia. E não precisa ser só com grandes iniciativas. É no mínimo, é no básico. Tem dia que alguém aqui está de TPM (tensão pré-menstrual), está na baixa, e eu digo: ‘vai nessa, amanhã você volta.’ A gente sabe como é. Eu trago a minha filha às vezes, outras (funcionárias) que não tinham onde deixar (seus filhos) também o faziam… Nessas pequenas coisas se nota o diferencial de mulheres conduzindo.”
Neste papo com a UBC, ela analisa o papel da sororidade para o sucesso do negócio, explica o conceito por trás do Sarará e fala de futuro.
Depois daquele encontro de 2011, como é que a coisa evoluiu?
Em 2011, éramos funkeiras e nos encontramos. Fomos produzindo shows por três anos até que, pouco a pouco, notamos que estávamos presas num nicho que nos limitava e fechava algumas portas. A gente não conseguia alugar certos lugares nem aprovar editais na secretaria de Cultura, por exemplo.
Tínhamos muita vontade de fazer evento num parque. As chances de levar o funk, ou mesmo o rap, a um parque público eram muito menores naquele momento. A música urbana, no geral, ainda não tinha a abrangência, aceitação e abertura que têm no mainstream atualmente. Um dia, Bell e eu nos sentamos num Subway, porque nem escritório tínhamos, e começamos a ter ideias pra criar esse festival que queríamos. Demos o nome de Sarará BH, levantamos o Criolo e uns blocos de carnaval de BH, e a coisa ganhou vida e se repetiu nos anos seguintes.
Em 2016, conheci o Lagoon, banda que a gente gerencia. Eu estava um pouco desgastada da montanha-russa que é fazer evento, e comecei empresariamento. Mais artistas foram se aproximando, criamos um selo, uma editora, começamos a fazer sessions musicais, workshops, eventos de capacitação para os artistas através do braço MacacoLab… Já em 2021, no meio da pandemia, abrimos um espaço aqui perto da sede, o Mamão Com Açúcar, para uma edição híbrida do festival, com 300 pessoas presencialmente a cada fim de semana e transmissão pela internet. Foi o primeiro show pós-pandemia da Marina Sena, teve encontros incríveis com Chico César, Luedji Luna, Céu e vários outros. Era para ter durado uns meses, e já são três anos.
O Sarará é conhecido por ser um festival com propósitos claros. Como isso surgiu?
De uma maneira natural, surgiu uma vontade de levar certas pautas para o festival, provocar discussão e reflexão. Na primeira edição, levantamos muito questões sobre falta de empatia. Estávamos trazendo o Criolo, então trabalhamos em parceria com o projeto Existe Amor em BH. Estimulamos a doação de sangue em troca de ingressos.
No segundo ano, entramos com racismo, diversidade: como as pessoas se veem e como veem o outro. E assim foi. Todos esses propósitos formaram o corpo do Sarará. Esse é o lugar. A gente tem, desde 2016, uma mandala, que apresenta uma série de propósitos ao longo de um círculo: despertar, aceitar, conviver, evoluir, sentir. A cada ano, trabalhamos um verbo dessa mandala. A ideia é que, quando a gente se perder ou não souber pra onde ir, a gente possa dizer “ó, o Sarará é isso aqui”. Dez anos de Macaco, dez de Sarará, e a mandala está sendo um novo norte pra desenvolver um novo Sarará. Este ano estamos em conversa ainda sobre o verbo. A gente está tendendo muito a ir para o evoluir. Porque, afinal, qual será o próximo passo? Uma década, e aí? O que somos? O que vai ser?
Na prática, como aparecem esses propósitos no festival?
Temos um projeto de inclusão desde 2017, com o propósito de trazer pra trabalhar no festival pessoas que estavam à margem do mercado e inclusive da sociedade. Começamos com o coletivo de pessoas trans. Chamamos uma grande parceira nossa, psicóloga, especialista em desenvolver metodologias de capacitação, a Simone. E procuramos a ONG BH Transvest (criada pela hoje deputada Duda Salabert). Fizemos capacitação com elas, deu muito certo, e a gente disse: é incrível, seria importante que outros festivais seguissem esse exemplo. Fizemos um segundo ano com elas. No terceiro, abrimos outras frentes e identificamos as pessoas de mais de 65 anos, que também estão fora do mercado. Pesquisando, entendemos que seria perfeito colocá-las ali na linha de frente, recebendo os ingressos. Quando a pessoa chega no festival, a primeira experiência que, talvez, vai determinar toda a vivência dela ali dentro é a entrada: se tem uma entrada turva ou desgastante, com fila, com algum brucutu segurança destratando a pessoa... Então, põe uma avozinha ali, e é outra história. A pessoa vai entrar desarmada.
Na última edição, fizemos em parceria com a Crias da Música, da Sony Music, e focamos em mulheres pretas para atuar em todas as áreas do festival. Até então, custeávamos sozinhas. Agora, temos apoio da Sony.
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A curadoria das atrações também é pensada em função da mensagem do ano?
Totalmente. Em 2016, introduzimos a mandala e o conceito dos encontros. Teve Criolo de novo, quase um padrinho nosso, além de Liniker, Marechal, MC Carol, Ney Matogrosso, Gabriel O Pensador. A ideia era a pluralidade mesmo. Em 2022, falamos de conviver, então abusamos das parcerias inusitadas sobre o palco, Zeca Pagodinho com Emicida, coisas assim. Houve um ano em que o verbo era aceitar, então quem liderou foram as vozes LGBTQIA+, como Pabllo Vittar, Gloria Groove.
A gente procura fazer um equilíbrio do que o público quer muito e do que achamos que ele deve conhecer porque é bom demais. Inconscientemente, estamos sendo levadas a um ponto de olhar pra essa história toda e ver o que a gente pode resgatar. Queremos fazer uma próxima edição, em agosto, que volte às raízes da ideia inicial.
O que o fato de as duas sócias-fundadoras serem mulheres traz de diferente?
Tudo. Claro que isso é um negócio, também é para ganhar dinheiro, mas não só. Temos uma visão quase que materna ao tratar as coisas, as pessoas. Isso nos tornou o que somos hoje. Só construímos isso por sermos quem somos. Lá em 2014, chamamos vários homens pra fazer o festival. Naquela época, imagina, era literalmente só homem neste mercado. E todos acharam uma viagem, cada um do seu jeito: “não!", "que é isso?", "ficar levantando essas pautas?”... Realmente, não era o momento, ninguém estava fazendo. Acho que pegamos uma energia que estava começando a rolar,. Quatro produtores reconhecidos na cidade disseram não. Fizemos no feeling, na marra. E fizemos do nosso jeito.
Ao longo dos anos, fomos construindo uma rede de mulheres incríveis. Os pontos de viradas de chave todos na nossa trajetória têm a ver com elas. A Flávia César, da Warner Chappell, nos puxou para o mercado nacional, nos deu dicas incríveis, nos estimulou a criar a editora. A Dani Sousa, da UBC, abraçou demais a gente: "vem cá, vamos abrir um selo aqui dentro, vamos juntas." A Mônica Brandão, que foi do Multishow, está na Altafonte, foi fundamental também. A Leninha (Brandão), empresária do Zeca Pagodinho, virou uma amiga. A Andrea (Franco, produtora cultural e empresária) dos Gilsons… Foi se formando um esquadrão que nos fez muito mais fortes.
E a gente se sente com muita energia para fazer mais, trazer mais oportunidades para as mulheres numa cena que é efervescente. O que a Flávia fez comigo eu quero poder fazer por elas. Quando a gente cria rede, que não é só questão de qual o lucro disso, mas questão social e humana, acaba potencializando inúmeras possibilidades que ainda não foram criadas e podem ser criadas pelas mulheres, por nós. E não precisa ser só com grandes iniciativas. É no mínimo, é no básico. Tem dia que alguém aqui está de TPM (tensão pré-menstrual), está na baixa, e eu digo: "‘vai nessa, amanhã você volta." A gente sabe como é. Eu trago a minha filha às vezes, outras (funcionárias) que não tinham onde deixar (seus filhos) também o faziam… Nessas pequenas coisas se nota o diferencial de mulheres conduzindo. Muitas vezes, por não acessar esse lugar, e não por mal, os homens não conseguem desenvolver certas coisas na organização do trabalho. A gente está conseguindo, acho. As meninas permanecem por muitos anos, acredito que seja porque se sentem pertencentes nesse ambiente. Somos muito gratas por isso.
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