Plataforma reclassifica plano premium como 'pacote', o que lhe permite transferir menos royalties; prejuízo seria de US$ 150 milhões ao ano
Sem aviso prévio, o Spotify recentemente reclassificou os planos premium Individual, Duo e Familiar como “pacotes de serviços”, já que todos eles passaram a incluir audiolivros. O que poderia ser um tecnicismo sem importância gerou uma tempestade nos Estados Unidos, pois agora a gigante do streaming mundial está pagando menos royalties a compositores e editoras pelas músicas executadas na plataforma naquele país.
Isso se deve a uma regra incluída no Phonorecords IV, a mais recente atualização (de 2022) das normas e tarifas de pagamentos de direitos autorais nos Estados Unidos orquestrada pelo Copyright Royalty Board (CRB), um colegiado dentro da Justiça americana dedicado exclusivamente ao tema. De acordo com a tal regra da Phono IV, que na época foi aprovada entre os diferentes players da indústria, pacotes de serviços não rendem aos titulares de direitos autorais a mesma receita que um plano normal de música rende. E é aí que entra o que representantes de compositores e editoras chamam de “malandragem” do Spotify.
“Em 1º de março de 2024, o Spotify decidiu unilateral e ilegalmente reduzir sua receita declarada com contas premium em quase 50%, pois transformou a conta em pacote sem aviso prévio”, afirmou em nota o MLC, ou Mechanical Licensing Collective, uma entidade criada pela Lei de Modernização da Música de 2018, e que atua desde 2021 centralizando as licenças do streaming em nome das sociedades de gestão coletiva.
Segundo a revista americana Billboard, o prejuízo anual para compositores e editoras musicais poderia chegar a US$ 150 milhões.
Mas por que só os compositores e editoras são prejudicados, e não as gravadoras, por exemplo, que ficam com a maior parte das receitas do streaming?
Isto acontece porque o artigo 115 da Lei de Direitos Autorais dos Estados Unidos manteve uma regra bem antiga, de 1909, segundo a qual a exploração de obras musicais não dramáticas está sujeita a uma licença compulsória que deve ser gerida por um órgão ou entidade público. No caso atual, o CRB. Já as gravações em si, ou seja, os fonogramas (sobre os quais gozam de direitos as gravadoras) não se incluem na norma. Na prática, isso quer dizer que as gravadoras podem negociar livremente os valores que cobram do Spotify, da Apple Music e de todas as outras plataformas. Já os compositores e as editoras musicais, que têm direitos sobre as obras em si, ficam atrelados ao que diga cada uma das edições do Phonorecords publicadas pelo CRB.
Todo esse imbróglio só vale para os Estados Unidos porque a lei americana, claro, não tem jurisdição sobre o resto do mundo. No Brasil e na maioria dos outros países, os compositores e as editoras, em tese, têm liberdade para negociar preços diretamente com as plataformas (independentemente de o poder de fogo real que tenham para isso ser reconhecidamente escasso).
Cabe recordar que os EUA, sozinhos, respondem por US$ 17,1 bilhões, ou quase 60% de tudo o que a música gravada gerou mundialmente em 2023, segundo dados da RIAA e da IFPI, respectivamente a associação da música gravada americana e a federação internacional da indústria fonográfica mundial. Por isso o “gato” que o Spotify está dando com a reclassificação é tão significativo.
Vários movimentos ocorreram desde que os números do prejuízo foram conhecidos. A poderosa NMPA, a associação das editoras musicais americanas, já anunciou o início de um intenso lobby no Congresso daquele país para mudar o dispositivo da lei que, segundo ela, “engessa” compositores e editoras às regras de pagamentos estabelecidas pelo CRB. A NMPA quer um projeto de lei que permita a livre negociação para essas duas categorias, como já ocorre com as gravadoras. Isto, claro, livraria compositores e editoras de estarem sujeitos a regras como a dos pacotes de serviços que pagam menos royalties do que os planos normais.
“Estamos oferecendo uma proposta legislativa para corrigir permanentemente o desequilíbrio de poder que os compositores enfrentam ao estarem sujeitos a uma licença compulsória para suas músicas, enquanto as gravadoras não a têm”, disse David Israelite, presidente da NMPA.
Em carta enviada a senadores dos partidos Democrata e Republicano, o executivo denunciou o que chamou de “manipulação das regras de licenciamento compulsório (pelo Spotify)” e um “abuso contínuo do sistema legal pelos serviços digitais, deixando claro que uma ação adicional do Congresso é necessária.”
Já a Sony Music Publishing (SMP) escolheu outra frente de ação: a Justiça. A poderosa editora anunciou que deverá acionar seu aparato legal nos Estados Unidos para processar o Spotify. Coisa que o Mechanical Licensing Collective já fez no dia 16 passado, quando registrou uma ação contra a maior plataforma de streaming do mundo.
“No final do ano passado, o Spotify adicionou uma oferta de audiolivros ao seu plano de assinatura premium nos EUA e em vários outros mercados. Em seguida, reclassificou o plano como um pacote, o que, segundo eles, lhes permite pagar uma taxa reduzida de royalties”, escreveu Jon Platt, presidente da SMP, numa carta enviada aos compositores que a editora representa, na qual ele disse que as perdas registradas até agora já são da ordem de 20% só para a Sony. “Na prática, o Spotify está assumindo a posição de que todos os assinantes dos EUA fazem parte de um pacote, sem que eles tenham escolhido isso.”
Paralelamente, pessoas físicas já estão dando passos individuais para tentar reverter a reclassificação. No último dia 17 de maio, o compositor americano George Johnson registrou uma queixa formal no CRB na qual pede providências contra o que chama de “distorção chocante e interpretação intencionalmente equivocada por parte do Spotify" da licença compulsória "para baixar fraudulentamente as taxas pagas aos compositores ainda mais do que a taxa média atual de $0,00012 que pagam hoje”. A entrada de mais associações, editoras e pessoas físicas numa cascata de ações legais deve alimentar e, previsivelmente, estender por meses ou até anos a fio o imbróglio criado pela gigante sueca.
Procurado pela UBC no Brasil para comentar o caso, o Spotify enviou um comentário por meio da sua assessoria de imprensa. Nele, defende o modelo de pacotes e alega que está alinhado com a prática do mercado - embora, até o momento, nenhuma outra das principais plataformas de streaming do planeta tenha adotado um movimento semelhante.
“O Spotify está no caminho para pagar mais a editoras e sociedades (de gestão coletiva de direitos autorais) em 2024 do que em 2023. Como nossos parceiros da indústria estão cientes, mudanças em nosso portfólio de produtos significam que estamos pagando de maneiras diferentes com base em termos acordados tanto por serviços de streaming quanto por editoras. Há muito tempo, diversos DSPs (provedores de serviços digitais, como as plataformas de streaming) pagam uma taxa menor por pacotes em comparação com uma assinatura de música avulsa, e nossa abordagem é consistente com isso”, afirmou o Spotify no comunicado.
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